#3 - O esquecimento dos Buendía, a demência de Gabriel García Márquez e a travessura do destino
“Para mim bastaria estar certo de que você e eu existimos neste momento”. - Cem Anos de Solidão
Aviso: esta edição contém alguns spoilers sobre Cem Anos de Solidão.
Este é o Tudo o que quis dizer, mas só escrevi. Um espaço público (e bem íntimo). É parte daquilo que guardo para mim e que agora você tem acesso, diretamente do meu coração para o seu dispositivo móvel. Aqui, falo sobre literatura e tudo o que aflige minha mente. Que bom que você chegou. Caso não seja assinante, fique à vontade e clique no botão abaixo :)"
1. O que você seria sem a sua memória?
Os momentos mais bonitos da minha vida estão guardados no meu coração e na minha memória. Fico feliz por ainda conseguir me lembrar de alguns:
O amanhecer no Pontal do Atalaia, os primeiros passos dos meus sobrinhos, minha colação de grau, a maneira como minha madrinha reagiu quando contei que tinha conseguido um emprego…
Minha memória é o que me mantém viva, mas falha em alguns momentos. Às vezes, mal lembro o que comi no café da manhã. Algumas memórias de longo prazo já se perderam no meu hipocampo.
Sem a memória, a humanidade estaria fadada ao fracasso. Sem o processo de aquisição, consolidação e evocação, nos esqueceríamos de eventos cotidianos e situações grandiosas, como a escrita de um livro que não passa da primeira página.
2. Memória e destino: um retrato da condenação
Publicado em 1967, Cem Anos de Solidão se tornou um fenômeno ainda na primeira tiragem, que vendeu 10 mil exemplares assinados pelo mestre Gabriel García Márquez.
A obra detalha as quatro gerações da família Buendía e é considerada um dos romances mais importantes da história latino-americana, pela abordagem social com um tom místico do realismo mágico.
Cem Anos de Solidão concedeu a Gabo o Prêmio Nobel de Literatura e o livro se destaca como um retrato da construção da América-Latina em seu contexto de exploração e revoluções passadas.
Sobretudo, o livro retrata que um cigano escreveu os pergaminhos com o destino dos Buendía, cujas estirpes, condenadas a cem anos de solidão, não teriam uma segunda oportunidade na Terra.
Somada às gerações e eventos curiosos, traumáticos e densos, a história nos mostra que mesmo as diferentes as gerações seriam incapazez de alterar o destino já escrito.
3. A condenação da família pela amnésia coletiva
Li Cem Anos de Solidão no Kindle e marquei diversos trechos ao longo da história. Entretanto, este é o que me chamou a atenção:
“...Aureliano e Gabriel estavam ligados por uma espécie de cumplicidade, baseada em fatos reais em que ninguém acreditava e que tinham afetado as suas vidas a ponto de ambos encontrarem à deriva, na ressaca de um mundo acabado que só restava a saudade.”
Em determinado ponto da obra, o povoado já não se lembra do Coronel Aureliano Buendía, nem mesmo de sua família e de seus feitos por Macondo.
Revirei as várias anotações que fiz ao longo do texto, mas não consegui encontrar o momento exato em que isso acontece. Acho que essa é uma das principais características de Cem Anos de Solidão: a fluidez do texto.
Não escrevo romances, mas imagino o nível de complexidade envolto na construção de uma narrativa sem lacunas abertas para dúvidas. Todos os elementos na obra de Gabo, por mais que pareçam confusos, possuem um contexto.
Em relação ao caráter social do livro, e depois de muitas pesquisas para desenvolver este texto¹, entendi que a amnésia coletiva simboliza a perda de memória histórica e cultural dos personagens, bem como reflete o ciclo de repetição e condenação da família Buendía.
O que me motivou a escrever tudo isso, entretanto, é saber que a população se esqueceu dos Buendía, assim como Gabo se esqueceu de quem era. Segundo seu filho², esse foi o fim do mestre:
“Diagnosticado com demência, o gênio se tornou incapaz de escrever e enfrentou a perda de memória progressiva. Anos antes de morrer, lia os próprios livros sem saber que eram dele. Quando tinha consciência das lembranças se esvaindo, pedia ajuda aos filhos. ‘A memória é minha matéria-prima’, dizia. Seus livros nunca nos deixarão esquecer do valor mágico delas”.
4. Gabriel García Márquez: memória, destino e o fim de uma era literária
Dizer que algo “virou um império romano”, segundo o TikTok, significa uma obsessão, algo sobre o qual você pensa, pelo menos, uma vez por dia.
Talvez o termo represente com bastante veemência a minha curiosidade e total impacto entre o esquecimento dos Buendía e a demência senil que acompanhou Gabo até os seus 87 anos.
Assim como o povoado de Macondo, Gabo também se esqueceu da numerosa família que viveu acontecimentos sobrenaturais, desde o arrebatamento, passando por uma senhora que viveu anos trancada sozinha em casa, até a destruição do imóvel dos Buendía pelas formigas e traças.
Do mesmo modo que o local e a família ruíram ao final do livro, sendo varridos do vilarejo, a memória de Gabo desmoronou, levando consigo a silenciosa vivência de quem dedicou anos no processo de desenvolvimento de uma das obras-chave do realismo mágico.
Às vezes, penso: seria uma doce travessura do destino? Seria um algo predestinado, algo que nem mesmo o mestre Gabriel García Márquez pudesse mudar, mesmo que quisesse? Da dúvida nasceu esta edição.
Gabo deixou este mundo para viver, acredito eu, perto de seus personagens, no dia 17 de abril de 2014. Deixou dois filhos: Rodrigo García, Gonzalo García Barcha, frutos do seu amor por Mercedes Barcha.
Deixou também a saudade nos leitores. Além disso, deixou seu legado no realismo mágico, em uma obra traduzida para 36 idiomas e que vendeu 40 milhões de cópias.
Referências
CEM anos de solidão: uma metáfora da condição latino-americana. Unicamp. Disponível em: https://unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/05/15/cem-anos-de-solidao-uma-metafora-da-condicao-latino-americana/. Acesso em: 15 out. 2024.
CEM anos de solidão, 50 anos: uma epopéia latino-americana. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP. Disponível em: https://www.fflch.usp.br/41167. Acesso em: 15 out. 2024.
LIMA, Fábio Ricardo Gonçalves de; NASCIMENTO, Gilmar de Carvalho. Cem anos de solidão: o ciclo temporal, as profecias e a escrita como metáforas de poder. Revista Letras, v. 1, n. 57, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/rl/article/view/64095/37149. Acesso em: 15 out. 2024.
Relato do filho de Gabriel García Márquez revela dias finais do escritor. Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/relato-do-filho-de-gabriel-garcia-marquez-revela-dias-finais-do-escritor#google_vignette. Acesso em: 15 out. 2024.
Notas de rodapé
1. Muitas pesquisas MESMO. Gastei grande parte dos meus neurônioss tentando achar um paralelo antes de concluir meu raciocínio.
2. “Gabo e Mercedes: uma despedida” , o livro de memórias escrito por Rodrigo García, filho de Gabriel García Márquez, está disponível na Amazon. Ainda não tenho, mas gostaria.
Escreva você
✨ Qual é a sua melhor memória? Aquela que você não gostaria de esquecer por nada?
Não disse, mas escrevi
Meu noivo foi a primeira pessoa que vi lendo Cem Anos de Solidão e, após meses, peguei a versão em e-book.
Ao Thiago, meu companheiro: tenho muitas memórias com você e grande parte delas me ajudam a construir a noção de segurança. Com você, descobri o que era ser amada.
Ao Gabo, mestre das borboletas amarelas: gostaria de ter 1% da sua genialidade e saber olhar a vida pelas lentes do realismo mágico.
Tudo o que quis dizer, mas só escrevi
Este é um espaço onde posso consolidar o aprendizado adquirido nas minhas leituras, além de ser um canal para fazer o que me define: escrever. Me sinto eu mesma quando coloco as palavras no papel. Leia-as a cada 15 dias diretamente na sua caixa de entrada.
Quem escreve
Sou Alessandra da Veiga, mais conhecida como Alê. Jornalista por formação, mas Redatora SEO por ofício. Tenho 2 sobrinhos lindos que são minha paixão. Além disso, amo a praia, mas não sei nadar.
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