#9 - O Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus e a vida que não vemos
“Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil.” - Quarto de Despejo
Este é o “Tudo o que quis dizer, mas só escrevi”. É parte daquilo que guardo para mim e que agora você tem acesso, diretamente do meu coração para o seu dispositivo móvel. Falo sobre literatura e tudo o que aflige minha mente. Que bom que você chegou. Caso não seja assinante, fique à vontade e clique no botão abaixo :)
1. A favela é o quarto de despejo da cidade
Eu namorei por muito tempo o livro de Carolina Maria de Jesus. Não me lembro exatamente quando ouvi seu nome, mas ele nunca mais saiu da minha memória. Acredito que seu relato também não sairá.
A leitura de “Quarto de Despejo” é incômoda. E é para ser mesmo. Carolina escreveu, página a página, sobre uma vida que é difícil imaginar para quem não passou pela mesma experiência. Falta água, falta comida, falta saúde, falta dinheiro. Falta tudo.
Diversas vezes, durante o livro, Carolina retratou a sua angústia e desejo de sair da extinta favela do Canindé, às margens do rio Tietê. Em alguns trechos, ela comentou sobre a vida na alvenaria, como chamou a cidade, mas uma passagem específica me pegou:
“Avenida São João 190, 82 andar apartamento 23. O que me deixou preocupada foi o prédio ter 82 andar. Ainda não li que São Paulo tem prédio tão elevado assim. Depois pensei: eu não saio do quarto de despejo, o que posso saber o que se passa na sala de visita.”
O livro, formado a partir de seus diários, traz o cotidiano da catadora de papel que deu tudo de si para prover os seus filhos. Como ela mesma contou: “Depois que eu trabalho e ganho dinheiro para os meus filhos, vou descansar. É um descanso justo”.
Mas Carolina não se resume a papéis e metais. Ela era sensível, via a beleza das coisas, enxergava as pessoas com sabedoria. E não há como não sair balançado do seu livro.
2. Vejo Carolina em outros rostos
O que mais chamou a atenção em “Quarto de Despejo” é a escrita da Carolina. Sobretudo, a maneira como ela se reafirmou como escritora. Carolina, mesmo tendo estudado apenas 1 ano e meio, como conta sua filha, escreveu a sua trajetória como pôde.
Carolina retratou a sua história por meio da sua escrevivência, termo criado pela escritora Conceição Evaristo, imortal da Academia Mineira de Letras.
A miséria, entretanto, foi a principal personagem em cena. Com ela, veio a fome. Em uma das passagens — algumas de cortar o coração —, Carolina disse:
“... Já faz tanto tempo que estou no mundo que eu estou enjoando de viver. Também, com a fome que eu passo quem é que pode viver contente?”
Carolina também enxergava a beleza da vida. Cantava, ouvia tango no rádio, apreciava as suas valsas vienenses. Escrevia em cadernos velhos o que lhe afligia a mente, mas também o que mirava com os seus olhos:
“Dizem os velhos que no fim do mundo a vida ia ficar insipida. Creio que é história, porque a natureza ainda continua nos dando de tudo. Temos as estrelas que brilham. Temos o sol que nos aquece. As chuvas que cai do alto para nos dar o pão de cada dia.”
Sua vida sofrida, movida à busca de dinheiro para comprar alimento para os filhos, me fez pensar nas outras Carolinas que existem nesse Brasil. Sua filha, Vera Eunice, em entrevista, disse que já viu sua mãe nos rostos de outras mulheres:
“Com essa pandemia, nós que trabalhamos em escolas da periferia e sabemos muito bem a realidade dessas famílias, resolvemos todos os professores e colaboradores fazermos uma vaquinha e fizemos uma pesquisa com as famílias (…).
Eu avisei que às 9h, as famílias podiam ir buscar as cestas; quando deu 6h da manhã já tinha uma turma sentada descalça, com chinelo de dedo, lenço na cabeça, muitos sem dentes. Avisei que ia demorar, era só às 9h, estava frio, e eles falavam “não se preocupe, não; a gente espera, não tem problema”. Mas ali eu vi a minha mãe, a minha mãe era assim: se sabia que ia ter comida, que iam dar, ela ia cedo para poder arrecadar. “
Essa, sem dúvida, é a semelhança mais triste com “Quarto de Despejo”: uma realidade tão parecida com a de 1960, ano em que o livro foi lançado. E talvez, Carolina seja mais atual do que nunca:
“Com as aguras da vida, somos uns infelizes perambulando aqui neste mundo. Sentindo frio interior e exterior.”
3. Para além da força: o que mais compõe Carolina?
Acompanhei muitas batalhas de poesia pelo YouTube quando comecei a escrever. Tem uma específica que não consigo esquecer, pois os versos sempre ressoam no meu ouvido:
“Na ponta do abismo lá vai a mãe preta
Aguenta o infinito num corpo
que o grito socorro acusa suspeito”
Durante a leitura, me peguei pensando em como Carolina era forte. Não sei ao certo o quanto de visão pós-escravocrata existe nesse pensamento compartilhado por muitas pessoas, mas me parece que sempre que uma mulher preta passa por períodos difíceis, resumimos a “ela é forte”.
Não quero debater sobre a sua resiliência. Carolina era uma mulher que não tinha nada e isso, por si só, é o catalisador para tirar ânimo e coragem de algum lugar para buscar o mínimo.
Carolina enfrentou um estado omisso, convieu diariamente com o racismo e viveu em uma luta constante contra a fome. Andou longas distâncias em busca de papel, viu violência na favela e fez de tudo para proteger seus filhos. Mas, ela também teve seus medos.
Não é que ela era naturalmente forte. Ela se tornou essa fortaleza por conta dos fatores externos. E o que me perturba é resumir a vida difícil dessa mulher ao seu quarto de despejo e apagar a sua essência.
Vera Eunice, entretanto, trouxe o outro lado dessa narrativa. Carolina também era de carne e osso. Em vídeo, ela fala sobre a beleza da sua mãe, sobre a sua preocupação com a educação dos filhos, sobre às vezes que dançaram e cantaram juntos.
Carolina, de fato, tirou força de lugares que eu sequer consigo imaginar. Mas, além de uma mulher batalhadora, ela era uma mulher sensível. Ela escrevia porque tinha prazer na atividade, se solidarizava com quem precisava no pouco que tinha e fazia dos livros a sua melhor companhia.
Não era o meu objetivo levantar essa discussão, mas todas as minhas palavras me trouxeram a este desfecho¹.
Acredito que a leitura por si só é um mecanismo de entretenimento. Mas ela também deve ser útil e construir a nossa visão crítica do mundo. E se “Quarto de Despejo” despertou em mim um incômodo, talvez ele faça o mesmo com você.
4. Demorei, mas voltei
Passei por um momento delicado de leitura no começo do ano. Desde a edição sobre Hemingway, comecei e parei de ler uns 3 livros, pelo menos. Não tinha foco suficiente e nada me atraía.
Entretanto, “Quarto de Despejo” é a minha segunda leitura do ano, e o meu maior número — na vida — foi 12. Após meu o contato com o booktok, percebi que a leitura virou uma competição de quem lê mais em menos tempo.
Essa foi a minha neura por um tempo. Inclusive, mudei a news para 1x ao mês porque, assim, eu leria um livro novo a cada edição. Novamente, a cobrança agiu de forma silenciosa na minha vida e eu não percebi. Resultado: estagnação.
Mas eu pensei: “quantos livros eu já li na vida? Precisa sempre ser sobre uma leitura nova?”. Por mais que essa edição seja sobre uma leitura inédita, daqui em diante, trarei também leituras anteriores à news. Esse será o nosso combinado.
Acho que é um recomeço para o Tudo o que quis dizer, mas só escrevi. E também espero te ver na próxima edição. Até lá.
Referências bibliográficas
BEZERRA, Lucila. O Quarto de Despejo está vivo”, afirma filha de Carolina Maria de Jesus. Brasil de Fato, Recife, 27 de out. 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/10/27/o-quarto-de-despejo-esta-vivo-afirma-filha-de-carolina-maria-de-jesus/>. Acesso em: 20 de jun. de 2025.
Notas de rodapé
Para ser antiracista:
Escreva você
✨ Você teria coragem de mostrar ao mundo os seus relatos mais profundos?
Não disse, mas escrevi
Àqueles que querem ler “Quarto de Despejo”: não é fácil, mas é necessário. Conhecer outra realidade por meio da literatura é uma experiência sem palavras e nos faz pensar em como somo ingratos na maior parte do tempo.
À Carolina: nada do que eu disser estará à altura de quem você foi, mas deixo a minha admiração. Você mostrou aquilo que as pessoas não querem ver.
Tudo o que quis dizer, mas só escrevi
Este é um espaço onde consolido o aprendizado adquirido nas minhas leituras, além de ser um canal para fazer o que me define: escrever. Me sinto eu mesma quando coloco as palavras no papel. Leia-as uma vez por mês diretamente na sua caixa de entrada.
Quem escreve
Sou Alessandra da Veiga, mais conhecida como Alê. Jornalista por formação e Redatora SEO por ofício. Tenho 2 sobrinhos lindos que são minha paixão. Além disso, amo a praia, mas não sei nadar (ainda).
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